terça-feira, 2 de janeiro de 2018

Regionalismo alegórico em “Auto da Romaria”,
de João Filho
Por Emmanuel Santiago

João Filho supera as limitações do regionalismo literário por meio de uma visada alegórica sobre o universo regional.

Com Auto da romaria, João Filho se consolida como uma das mais consistentes vozes líricas da literatura brasileira contemporânea. No livro, a trajetória pessoal do eu lírico principal, rememorada, cruza-se com o percurso histórico e geográfico da romaria que ocorre anualmente em Bom Jesus da Lapa, cidade natal do autor no interior baiano. Contudo, a própria romaria adquire um significado outro, alegórico, apontando para o caminho da transcendência. Nisso consiste seu regionalismo alegórico, em que se fundem a vertente regionalista de nossa literatura e a tradição literária ibérica.

Antonio Candido observa que, nos países centrais — cultural e economicamente falando —, o regionalismo nunca passou de fenômeno episódico, ao passo que, apenas nos países atrasados ou de desenvolvimento tardio, estabeleceu-se como tendência e produziu obras relevantes. A importância da temática regionalista esteve na elaboração dos elementos da realidade local, funcionando como contrapeso à adesão a modelos literários estrangeiros de maior prestígio cultural. Entretanto, com a modernização dos países periféricos, o regionalismo teria perdido vigor criativo e se tornado obsoleto. A revitalização dessa temática, então, ficara a cargo de autores que, por meio de uma forma inovadora, mesclavam a matéria regional a questões existenciais que ultrapassavam as circunstâncias histórico-sociais imediatas do universo representado. É a isso que o crítico chama de super-regionalismo e cujo principal representante na literatura brasileira seria Guimarães Rosa[1]. Para as finalidades deste ensaio, é preciso considerar que, embora as reflexões de Candido restrinjam-se à prosa, tivemos, no Brasil, uma poesia marcada pela tematização das circunstâncias regionais. É o que vemos na obra de Jorge de lima em sua fase mais tipicamente modernista, assim como em Joaquim Cardoso e João Cabral de Melo Neto.

João Filho é um desses autores que conseguem superar as limitações da temática regionalista, mas por meios diversos do que se verifica em Guimarães Rosa. Para Candido e outros intérpretes, na ficção rosiana, a superação da natureza documentária do regionalismo se dá, entre outros fatores, pela incorporação de procedimentos vanguardistas, sejam eles linguísticos, sejam narrativos. À primeira vista, a poesia de João Filho vai em sentido oposto: o da retomada das formas fixas. Em Auto da romaria, há a hegemonia do verso metrificado, além da presença de formas como a coroa de sonetos, a sextina, a terza rima, o romance ibérico etc. Mas não nos deixemos enganar por esse tradicionalismo, pois o poeta maneja o verso de maneira maleável e versátil, rompendo estrofes como unidades semânticas (atravessando o discurso de uma estrofe para outra) e tirando grande proveito das rimas toantes. Além disso, as imagens poéticas, criando associações inusitadas, denunciam uma sensibilidade moderna.

Até mesmo a definição do livro como “auto” expressa a ambivalência entre o moderno e o tradicional. O auto é uma forma do gênero dramático, de origem medieval e ibérica, intimamente ligada à cosmovisão e à moralidade cristãs, mesmo quando seu assunto é profano. No entanto, Auto da romaria não é, de fato, um auto. Trata-se de uma obra lírica, mas que, configurando vozes diversas, rompe com o monologismo do gênero lírico e aponta para a estrutura dialógica do drama. O eu lírico, que, na maioria das vezes, simula uma perspectiva autoral, assume diferentes personas vinculadas à romaria. Como se sabe, a dissolução das fronteiras entre os gêneros é um dos principais índices da modernidade na literatura.

Tampouco há um enredo que unifique os poemas e as diferentes partes do livro, como seria de se esperar de uma peça de teatro. Contudo, o próprio auto não costuma seguir as regras de unidade de ação do teatro clássico, sendo composto por cenas que são independentes entre si, embora girem em torno de um mesmo ensinamento moral (pois trata-se de uma forma que possui uma dimensão didática). O princípio da variedade construída com base numa unidade conceitual também preside a composição do livro de João Filho, ainda que tal variedade seja potencializada pela fragmentação própria ao impulso lírico. Como eixo do conjunto, servindo-lhe de elemento de coesão, está a romaria e o universo ao mesmo tempo íntimo e social que a circunda.
Em Auto da romaria, o particularismo da temática regionalista é suplantado por duas vias: a primeira delas é a maneira como a ambientação regional se mistura às recordações do eu lírico principal, cruzando a história da romaria com o universo familiar do autor. Destaca-se, como metáfora do trabalho da memória, a imagem do “menino contínuo”, procurando atar, conforme dizia certo narrador casmurro, as duas pontas soltas da vida: a maturidade e a juventude. Em “O aéreo testamento” (terceira seção do poema “Em torno da venda”), o legado imaterial deixado pelo menino nada mais é do que a pessoa que o eu lírico se tornou — “o menino é o pai do homem”, recorrendo a mais uma referência machadiana.

A segunda via por meio da qual João Filho suplanta o particularismo regionalista relaciona-se ao modo como, no livro, os índices da realidade podem ser lidos por uma chave transcendental, o que eleva a vivência imanente ao plano da experiência religiosa. É o que se vê no poema “A Gruta e o Morro”, em que a “áspera beleza da ardente paisagem” simboliza o árduo caminho da salvação por meio da ascese (essa “estreita senda”); a luz escaldante do sol, por sua vez, é a emanação da Verdade, ensinando sua “drástica doutrina”, enquanto o Morro representa a ideia de ascensão espiritual (assim, a Gruta, santuário e destino da romaria, é um correspondente terrestre do Paraíso):
Caminho de pedras
que o sol incandesce;
fantástico perfil
— o morro aparece,
e a vista se eleva,
na quentura de agosto.
Caminho de pedras,
paixão não é queda.


O “fantástico perfil” do Morro remete a duas imagens conhecidas da tradição literária. A primeira delas se encontra no primeiro canto d’A divina comédia, quando Dante, após vagar pela selva escura do pecado, vislumbra o monte do Purgatório, que conduz ao Paraíso:


Mas quando ao pé de um monte eu já chegava,
tendo o fim desse vale à minha frente,
que o coração de medo me cerrava,

olhei pra o alto e via a sua vertente
vestida já dos raios do planeta
que certo guia por toda estrada a gente.

Tornou-se a minha angústia então mais quieta
que no lago do coração guardara
toda essa noite de pavor repleta.


A outra imagem refere-se às “furnas montanhosas” da cena final da segunda parte do Fausto, de Johann W. Goethe, através das quais a alma do protagonista ascende às esferas celestes. Tanto A divina comédia quanto o Fausto estão repletos de imagens alegóricas, e o livro de João Filho parece filiar-se a essa tradição. Em “O monge e o monsenhor”, confirmando tal tendência, o Morro é recoberto de inúmeras conotações: “O Morro é a pedra que sonha,/ calcário onírico e ar”; “O Morro é a pedra que pensa,/ o seu calcário real, o azul e branco da crença/ é sua fé mineral”, e por aí vai.

No poema “6 de agosto”, a procissão anual do Bom Jesus da Lapa torna-se um correspondente (ou alegoria) da busca da alma pela Graça divina. Por isso, ela transborda além do tempo e do espaço, isto é, além das circunstâncias particulares do universo regional:
Não repare no caudal
que transborda de outras épocas,
nas multidões que deslizam,
misturando tantas cepas,
que acompanham o andor
em romaria sem pressa.

(…)

Mas guarde um quadro completo
do caudal sem calendário,
apesar do mês de agosto
ter o seu dia esperado.
Quem espera sempre alcança,
verá que não mente o adágio. (grifos meus)


A procissão ocorre num tempo fora do tempo, onde se cruzam as reminiscências da perspectiva autoral (experiência individual), a tradição da romaria (experiência social) e, sob uma perspectiva cristã, o anseio de toda alma pela salvação (experiência universal). De modo semelhante, o rio São Francisco, objeto de um poema em duas seções, também extrapola sua existência imanente, figurando como espelho da eternidade:
Eis o rio soturno que medita
sob a luz do Cruzeiro do Sul; vai
pela planície dupla — a eterna e a finita —

e constela as imagens que contrai.
Aqui e lá em cima, as quatro margens
sustentadas por linhas que não caem:

naquelas tem-se a plenitude da viagem
e, nessas duas, seu espelho: São Francisco.
(…)


A planície dupla sobre a qual o rio corre é constituída por seu leito (a terra) e pelo céu (aqui assumido em sua conotação metafísica). “Naquelas margens”, as de cima, vislumbra-se “a plenitude da viagem”, que é a eternidade; cá embaixo, temos o rio mesmo, que serve àquela de reflexo, de representação sensível. O poema, então, assume a forma dialógica, com o barqueiro José relatando ao eu lírico a história de sua conversão religiosa após uma vida de desvirtuamento. O barqueiro, sugerindo a figura de Caronte, é aquele que trafega entre as duas margens da existência: a vida e o Além, a imanência e a transcendência. Em seu relato, temos o que pode ser considerado uma atualização da Máquina do Mundo, objeto fabuloso presente no décimo canto d’Os lusíadas, de Luís Vaz de Camões:

(…)
entrei na dimensão da lucidez;
algo se deu, e numa peça toda inteira
— eu subia de barco na contrafluidez… —

meus caminhos se ataram na algibeira
do coração, quedei no centro da certeza;
algo se dá — a gota verdadeira,

não posso descrever com tal justeza,
se é que outros fulgores consegui,
o verbo vem da graça e da beleza

e foi o Amor sem véus que disse: aqui!
O coração do tempo revelado,
a clareza total descrita em si,
(…)
Apesar da matriz camoniana da passagem, parece haver uma relação intertextual mais estreita — por oposição — com o poema de Carlos Drummond de Andrade, intitulado justamente “A máquina do mundo”, do livro de 1951, Claro enigma. Neste poema, o eu lírico drummondiano, confrontado com a Máquina do Mundo numa estrada de Minas, prefere dar as costas aos mistérios que lhe foram gratuitamente revelados, numa explícita recusa ao metafísico:

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, (…)

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.

Tanto no poema de João Filho quanto no de Drummond, verifica-se o predomínio do decassílabo heroico (o segundo utiliza-se eventualmente do sáfico); outro elemento que os aproxima é a disposição dos versos em tercetos, embora o poeta mineiro prefira o verso branco, enquanto o baiano, lançando mão da terza rima, aproxima-se da estrutura d’A divina comédia, obra com a qual guarda semelhanças pelo teor metafísico e pela natureza alegórica. Se o eu lírico de “A máquina do mundo” dispensa a revelação, o barqueiro José (nome cheio de ressonâncias drummondianas) mergulha de cabeça no mistério.

A divergência entre os dois poemas resgata a polêmica de um artigo escrito por Bruno Tolentino para a revista Bravo! no ano de 2000. No artigo “Janelas sobre o caos”, Tolentino queixa-se do ambiente cultural acabrunhante do Brasil de sua época, atribuindo a culpa desse estado de coisas a Carlos Drummond de Andrade, que, na condição de nosso poeta maior, teria causado um estreitamento de nosso horizonte poético ao desprezar a temática metafísica: “Os impulsos de transcendência, a inquirição metafísica, a busca de uma dimensão sacro-mítica, o mesmo intuito religioso que a poderiam erguer acima do ‘mundinho poetizado’, ainda que poderosamente, pelo grande vate, ao fim e ao cabo satisfazem-se e esgotam-se com a luta política inflada em meta suprema da existência”[2]. Que o autor de Auto da romaria tenha escrito o que aparenta ser uma resposta à grande profissão de fé antimetafísica da obra de Drummond demonstra, descontadas a leitura enviesada e a injusta avaliação sobre a poética drummondiana, a grande importância de Tolentino para certa vertente da poesia brasileira contemporânea, na qual se inclui João Filho como um dos nomes mais proeminentes.

Podemos definir o regionalismo alegórico de João Filho da seguinte maneira: em Auto da romaria, os elementos do universo regional podem ser decodificados como índices de uma cosmovisão cristã, figurando como vestígios de uma ordem superior (na segunda seção de “São Francisco”: “Em Bom Jesus da Lapa, a luz fomenta/ os fios fundadores do mistério”). Grosso modo, a alegoria é um recurso retórico por meio do qual, pela representação de seres concretos, exprime-se um conteúdo abstrato, como ideias, preceitos, sentimentos, virtudes etc. Walter Benjamin, ao tratar do uso da alegoria na literatura barroca, observa como tal recurso expressa uma consciência da precariedade da existência terrena diante de uma ordem superior. O alegorista buscaria exprimir, de maneira incompleta e aproximativa, uma verdade que escapa à razão e à linguagem humanas, pois situada fora do plano terreno, destituído de significado intrínseco. Por isso a imagem alegórica é sempre um fragmento, a ruína de uma totalidade semântica inexprimível. Vem daí, também, a natureza arbitrária das alegorias, que buscam capturar o inefável numa imagem sensível[3].

A visão alegórica do homem barroco, embora carregada de elementos medievais, está na raiz de uma compreensão moderna do mundo. O barroco, em muitos sentidos, manifesta uma consciência angustiada do colapso da ordem tradicional com o advento da modernidade, correspondendo à antítese do otimismo racionalista do Renascimento. Sob a ordem tradicional, o mundo parecia uma unidade inteligível, plena de significado e passível de ser compreendida em seus fundamentos básicos. De repente, não apenas o saber tradicional mostrava-se inútil diante da nova realidade social que emergia, como também caía por terra a possibilidade de unificar as pessoas sob um único sistema de pensamento, ancorado institucionalmente na Igreja Católica. O real, em seus diversos aspectos, transformava-se numa rede inextricável de fenômenos e relações, diante da qual o indivíduo não conseguia obter mais do que uma visão confusa e fragmentária. A alegoria barroca exprime esse estado mental e, ao mesmo tempo, a nostalgia por uma perspectiva mais sólida e totalizante, por uma ordem capaz de redimir o aparente caos da existência.
Essa visão dilacerada da realidade só se faria agravar com a erupção do capitalismo industrial e seus desdobramentos. Octavio Paz, em “Analogia e ironia” (d’Os filhos do barro), mostra como o romantismo, no início do século XVIII, funda uma visão do mundo baseada na analogia, que, criando relações de identidade entre seres díspares, estabelece uma teia de correspondências na qual a aparente incongruência do universo seria redimida[4]. Contudo, a analogia nunca supera de fato a alteridade; ela apenas a transfigura numa imagem conciliada. Mais do que isso, a visão analógica e seu desejo de projetar uma versão pacificada do mundo trai a consciência da irredutível heterogeneidade das coisas: “A poética da analogia só podia nascer numa sociedade fundada — e roída — pela crítica. Ao mundo moderno e linear e suas infinitas divisões, ao tempo da mudança e da história, a analogia contrapõe não a impossível unidade, mas a mediação de uma metáfora. A analogia é o recurso da poesia para fazer frente à alteridade”[5].

No expediente alegórico da poesia de João Filho, observa-se a cosmovisão analógica descrita por Paz. Em Auto da romaria, subsiste o desejo de dissolver as contradições do mundo no absoluto, chegando-se ao momento em que

agora, tudo é silêncio,
conexão dos contrários,
parte dos céus se derrama,
da terra sobe uma parte,
pela coluna que ata
nesse momento os cenários. (grifo meu)


Ao final do percurso da romaria, no poema “6 de agosto”, os céus baixam à terra e a terra se eleva às alturas, unificando todos os espaços. Aqui, a região perde seus traços distintivos, integrando-se a uma unidade transcendental, e toda forma de alteridade é superada por uma síntese maior.
Contudo, a alegoria, como expediente analógico, não deixa de ser um meio pelo qual se manifesta a consciência da impossibilidade de, no plano terreno, operar-se a síntese almejada pela perspectiva autoral. Segundo Walter Benjamin, a alegoria procura, por meio de um acúmulo vertiginoso de significantes, cacos de imanência, transmitir um significado que está além dos recursos expressivos e intelectuais humanos. Se a alegoria existe, é porque o transcendente não se faz sensível (porque daí teríamos o símbolo). Além disso, o discurso alegórico, buscando reconstituir uma unidade perdida, expressa em suas tramas o caráter compósito e fragmentário do real.
O poema no qual as contradições do procedimento alegórico são mais visíveis é a nona seção de “Em torno da venda” — “A venda por dentro”. Nessa série de poemas, a alegoria não se volta ao espiritual, mas ao passado, numa tentativa de se resgatar, por meio do trabalho da memória, a integridade semântica daquilo que chamamos “vida”. O eu lírico procura encontrar, na criança que ele foi e no adulto que ele se tornou, no passado rememorado e no presente vivido, um princípio de unidade que constitua sua identidade. Para tanto, é preciso recolher estilhaços de lembranças que, assim como as mercadorias na venda de uma cidadezinha do interior, não formam um conjunto coerente:
Serengas, peixeiras,
vianas e naifas,
facões, lambedeiras
— as lâminas várias;

pregos, parafusos,
quinas, estreitezas
— o roxo mais puro,
a dor mais espessa;

Perceba-se como, na segunda estrofe, uma nota subjetiva (“a dor mais espessa”) começa a infiltrar-se na enumeração dos produtos postos à venda, deslocando o discurso do âmbito da pura objetividade para o da memória afetiva. No meio desse “caos que açula”, tropeçamos na figura de João Galego, o pai do eu lírico; em seguida, a enumeração continua:
espátulas, tornos,
formões, discos, cintas,
cincerros, gangolôs
— falta coisa ainda:
(…)
coloratos, bombas,
nitroglicerina,
dinamite assombra
— falta coisa ainda:

O “falta coisa ainda”, quase um estribilho, expressa as limitações da memória e da linguagem em sua tentativa de reconstituir o real em sua integridade de significado. Na verdade, o que não se reconstitui é o passado como experiência do sujeito lírico, uma experiência agora dispersa e, em alguma medida, inacessível. O fato de o poema terminar justamente com o “falta coisa ainda” concede palavra final à insuficiência do discurso diante daquilo que se pretende exprimir:
balança, ouro a fio,
o metro que finda,
serrotes, barril
— falta coisa ainda.


“A venda por dentro” mostra que a venda, como totalidade, é mais do que a soma das mercadorias vendidas, ou seja: a mera enumeração dos múltiplos elementos que compõem aquele espaço não é suficiente para dar uma ideia do que ele significa para o eu lírico. Desse modo, podemos considerar a venda como uma alegoria de um mundo incongruente e multíplice, que não se apresenta como síntese, ainda que a linguagem procure, em vão, oferecer dele uma imagem conciliada. Já as mercadorias, além de representar os fragmentos de imanência que compõem o mundo empírico, são alegorias da própria ideia de alegoria — meta-alegorias, portanto —, na medida em que, por um processo cumulativo, tentam reconstruir uma totalidade impossível de ser reconstruída.
Assim, se por um lado, em Auto da romaria, encontramos a fé numa ordem superior capaz de dotar a realidade de significado, por outro, esbarramos às vezes na consciência da precariedade dessa tentativa de dar significação às coisas. As imagens que expressam tal precariedade são várias: “crença precária” (“A Gruta e o Morro”), “na terra e alma/ velha secura” (“Lamentação das almas”), “sonho pobre” (“Promessa de cera”), “estilhaços da fé” (“Romeiros”) etc. É como se o poeta se voltasse à aridez da terra e à pobreza da população como uma tentativa de se aproximar do essencial, dispensando o que há de excessivo e redundante na imanência (em “A venda por dentro”, sugestivamente representado por mercadorias). No entanto, junto ao essencial, ele encontra a carência, o insuficiente, a precariedade, o sofrimento, que nem sempre admitem a transfiguração metafísica. Num poema como “Romeiros”, em que a romaria dos vivos se encontra com a dos mortos, a tônica está dada não na dor como caminho da salvação, mas na dor como condição inegociável do humano, irredutível, o que encontra na miséria dos habitantes da região uma de suas faces mais cruéis.

João Filho supera as limitações do regionalismo literário por meio de uma visada alegórica sobre o universo regional. Porém, a retomada da alegoria repõe os conflitos do homem moderno com uma realidade que se apresenta como manancial de contradições. Aparentemente, há uma dupla fuga da modernidade: da cidade cosmopolita para o espaço regional e da poesia de origem vanguardista (os diversos modernismos) para as formas tradicionais. Entretanto, estamos diante de uma poesia essencialmente moderna, assim como a cosmovisão que a funda, uma vez que não se trata mais de expressar uma ordem que, supõe-se, já esteja evidente, cabendo à linguagem apenas manifestá-la; em Auto da romaria, cabe ao poeta reconstituir precariamente tal ordem dos escombros da tradição, sobre os quais se erigiu a modernidade.

Dante, embora num diferente grau de entendimento, compartilhava com seus leitores contemporâneos uma cosmovisão sólida, com base na qual era possível construir suas alegorias. No caso do escritor moderno, especificamente de João Filho, é preciso criar uma imagem ordenada do mundo a partir de uma transfiguração poética da realidade empírica. O fato de sua poesia demonstrar as contradições e dificuldades desse empreendimento só a torna ainda mais complexa e intrigante, expandindo as possibilidades de leitura da obra para além da temática metafísica. Portanto, Auto da romaria não se limita ao universo regional que lhe serve de matéria, nem à visão religiosa do autor. Como toda obra de arte digna do nome, o livro formaliza esteticamente a experiência humana, expressando dilemas existenciais interessantes por si mesmos, independentemente das soluções propostas pelo artista.
______
NOTAS
[1] CANDIDO, Antonio. “Literatura e subdesenvolvimento”. In: A educação pela noite. 6ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011, pp. 190-6.
[2] TOLENTINO, Bruno. “Janelas sobre o caos”. Bravo!, nº 29, fevereiro/2000, pp. 21-2.
[3] BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Tradução João Barreto. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, pp. 189-201.
[4] PAZ, Octavio. Os filhos do barro. Tradução Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Cosac Naify, 2013, pp. 69-74.
[5] Idem, ibidem, p. 80.

Doutor em Literatura Brasileira pela USP. Autor de Pavão bizarro (poesia) e A narração dificultosa (crítica).